sexta-feira, 11 de março de 2016

Li na calçada: "QUEM NÃO DEIXA O QUE NÃO BASTA, NÃO DESCOBRE O QUE LHE FALTA". Então deixei tudo.

Estava embebida na vida que pensaram para mim, que pensei para mim, que deveria ser. Daí derrubar molho na toalha de mesa era o-que-vamos-fazer-agora-meu-deus. Essa vida que só olha a toalha, os fios da toalha, meu deus o molho na toalha. Essa vida de cuidar o ponto do bolo para não passar do ponto do bolo, vai que abatume vai que fica muito doce vai que fique azedo vai que fique seco. Quis. Afinal foram tantas histórias interrompidas que até peguei essa mania, e meti pés por mãos por pés por cabeça por joelho por ombro – você mesmo diz que enfio mil ossos na frente – e tudo fora das férias e tropeçando nos dias e nas tarefas, que resolvi gostar de quem gostasse de mim e me propiciasse um passo lento, um conforto, um esconde-esconde sem susto nem ferrolho. 

Apareceu a oportunidade, abracei, meio desconfiada, mas depois fundo, bem fundo, me esforcei, me disciplinei, me catequizei – de repente era tudo que eu precisava, então isso era ser feliz com alguém, era isso que se poderia exigir e querer. Claro que volta e meia esbarrava na vontade de esticar depois do cinema, fugir junto, correr no mato, tudo que se frustrava diante do carro que não pode ir na grama alta nem pode ser estacionado na rua nem muito menos molhado por biquini que saiu da piscina; no dia inadequado de esticar o cinema porque tem que voltar pra casa cedo porque tem que acordar cedo porque é sempre cedo ou tarde pra tudo que não foi programado com semanas de antecedência; ou então esbarrava nas minhas gargalhadas sem sentido  que só podiam significar que bebi muito café ou que está na hora de eu dormir. Agora me espanto como posso ter sido tão simplista, minimalista, conformista, mas é bom, sabe, significa que quando tudo for muito escuro, vou saber viver ali, naquele cantinho, fazendo fotossíntese com luz indireta.

Mas daí você. Daí você chegou dizendo que o mundo era mais que uma toalha suja de molho. Trouxe de volta minha lucidez-sensatez de que é só lavar a toalha ou jogar fora, de que a cama pode sujar, de que existe algo lá adiante, de que  o sal pode ser "setembro".  Que não precisa comer tudo se não quiser, pode comer somente a cereja (você diz) mesmo sem estar de férias (digo eu).  Tomar uns goles grandes de vida (você diz). Algo a ver com reconhecimento (digo eu). Lembrou de quem eu era antes deste cenho franzido que fui adquirindo. Lembrou, lembrei, sorri. Parecia que tudo poderia ser tão creme de ricota (light). Pois é.

Mas e daí será que conseguiríamos manter tudo leve? 

Imergimos em um sem-nome de passo próprio, um trem sem maquinista (sei ser clichê). Impossível antever a próxima estação. Impossível frear.  Somente seguir, comendo somente a cereja (é, gosto dessa sua frase, que não é sua), aproveitando o parêntese de vida no meio de tanta maquinaria, até a próxima imprevisível estação.

Onde você acaba, onde eu acabo, onde tudo acaba – não sei dizer. Mesmo desprevenida na curva para a direita sob a luz de um sol que esmorecia na Rua Santa Terezinha eu não saberia dizer. O que sei e afirmo e me firmo nessa estaca é que você me traz a lucidez, a clareza, a nitidez, a distinção e todos os sinônimos disto que é enxergar de repente o que é importante nessa vida, e a visão repentina arrebata até a mais cética das pessoas. Um fulgor que arde os olhos e encanta e faz o peito agitar. Talvez eu tenha ficado louca de lucidez (louca e lúcida?), mas é assim que entendo teu significado. E não sei da próxima estação porque não sei quanto tempo nessa vida a gente aguenta viver de lucidez e leveza. É também por isso que volta e meia trago embaixo do braço três ou quatro tijolos, que você pacientemente recusa. 

domingo, 19 de agosto de 2012

Domingo

Sentamos no sofá depois do almoço que tentei cozinhar (sempre sai pior que o planejado, mas tu já aprendeste a me elogiar independentemente dos resultados). Falei “que domingo gostoso”, e tu concordaste, olhando o sol que de soslaio se insinuava no estreito corredor entre o prédio onde moro e o outro. Segurava tua mão, macia e carinhosa, enquanto me enebriava no cheiro dos teus cabelos ruivos.
Como é bom te namorar assim. Uma coisa tão simples - sentar no sofá. Sem TV, sem radio, sem livro. Só ficar sentada com tuas pernas em cima das minhas, sentindo o vento da rua entrar pela janela; conversar devagarinho, fazer palhaçada, rir contigo; encostar em ti, te acarinhar.
Sorrir a tranquilidade acumulada de todos os domingos passados, o nosso amor calminho.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Chuva



Sempre gostei de chuva.
Quando criança, acreditava ser capaz de fazer chover. Queria me vingar de alguém ou provar meus poderes, saía para o pátio (da praia, da cidade, do interior – já morei em tanta casa que já não lembro mais) à procura de um graveto firme e razoavelmente grande. Seria minha varinha. Ia para um canto, olhando para o céu, e falava várias coisas, compreensíveis ou não, porque tinha mania de inventar línguas, acrescentando palavras mágicas aprendidas nos desenhos, abracadabras e afins. Às vezes me vestia de preto antes de procurar a varinha. Quando decidi acreditar em Deus – meus pais me deram a liberdade de escolher, me explicando que algumas pessoas crêem, outras não, e que cabia a mim escolher -, apelava também a ele. E, como vez ou outra choveu mesmo, achava que eu tinha esse poder secreto.


Meus pais me introduziram ao banho de chuva. Nunca me disseram aquelas frases proibitivas comuns a tantos pais, “não pode”, ”tu vais te gripar”. Na minha lembrança mais remota de um dia chuvoso, morávamos em uma pequena casa no fundo da casa do meu avô, separada desta por um pátio pequeno. Nossa casa tinha na parte de fora uma pequena trilha de lajotas, e meu pai me levou para lá quando chovia muito, e só lembro que ele estava passando xampu no meu cabelo e me ensaboando numa bica da calha que jorrava água da chuva sem parar. Fiquei perplexa porque não entendia muito o que estava acontecendo, talvez fosse mais uma confusão adulta tipo quando minha mãe esqueceu que tinha dado minha toalha de banho pra ser a toalha da nossa gata Mixo e me secou com a toalha da gata e eu tive que tomar banho de novo. Vai ver meu pai também houvesse se confundido, mas foi tão divertido que não perguntei nada. Depois disso eu sempre saía para brincar na chuva.


Por outro lado, meu irmão, sete anos mais novo do que eu, todo o santo temporal começava a berrar incessantemente. Não entendia por que ele tinha tanto pavor de chuva, de temporal, embora ele tenha tido a “má” sorte de ser pequeno em uma época em que chovia granizo com freqüência em Porto Alegre, e o quarto dele era do lado de uma sala com telhas transparentes de um material plástico (plástico?) barulhento. Chuva de granizo era um tiroteio em casa, potencializado pelas telhas especiais. Outro pânico do meu irmão era quando faltava luz. Era fácil saber onde ele estava, era só seguir o choro estridente. Se agarrava em alguém e não soltava mais até que a luz voltasse. Bem diferente de mim, que com a mesma idade achava essa uma ótima oportunidade para testar minha camiseta do Mickey que brilhava no escuro.


Uma das minhas brincadeiras preferidas no verão era quando minha piscina de plástico toda remendada com fita adesiva estava cheia, e eu nela brincando sozinha ou com as amigas. Aí, acaso uma hora começasse a chover, então eu pedia para a minha mãe que me deixasse ficar mais porque já tinha aprendido que quando chove a água da piscina fica mais quente. Eu me enfiava na piscina com a água até a boca, gritava “Mãããããe! Manhêêêê!!!” e pedia para minha mãe trazer um guarda-chuva. Talvez outras mães pensassem que atrairiam raio ou simplesmente fariam a criança sair de lá, mas a minha mãe ia para dentro da casa e voltava minutos depois com um guarda-chuva pra mim. Serelepe, como sempre, eu abria o guarda-chuva e tentava, de diversas formas, encaixar ele em uma das quinas da piscina de plástico. Era difícil, então tinha várias idéias para melhorar o design das piscinas de plástico, mas, no fim, apoiava ele na quina e continuava com a água cobrindo a boca. Assim me sentia escondida, protegida do mundo, vendo tudo, mas ao mesmo tempo completamente livre de apuros. Um momento especial e secreto. Como se fosse a sensação primitiva do momento adulto de chegar em casa sozinho e ler um livro gostoso.


Quando chovia muito no interior e a terra tipicamente vermelha embarrava as roupas por aí fazendo muita gente mal-humorada, às vezes faltava luz. Quando faltava luz era sempre dia de sopa. E eu adorava sopa. Não sei se adorava sopa e chuva e falta de luz por eles mesmos ou porque meus pais faziam tudo ser tão legal. Quando faltava luz, meus pais cozinhavam sopa juntos, e me lembro de diversas ocasiões em que nos sentamos na sacada de casa, comendo na mesa de branca de ferro, olhando a chuva na escuridão. Uma certa vez minha mãe estava fora quando faltou luz. Fazia muito frio, chovia e havia faltado luz. Então meu pai me convidou para fazermos uma supresa para ela. Acendeu a lareira e fez a janta, enquanto eu colocava a louça na mesa baixa da sala. E quando minha mãe chegou comemos juntos, conversando.


São muitas lembranças com chuva. Lembranças de criança, gritando na chuva e rindo e chutando poças d'água por aí com as primas, até lembranças adolescentes andando de bicicleta pela praia me enxarcando de água e barro e areia, depois lavando o carro da minha mãe de pés descalços na grama molhada. Tantas boas lembranças.


É por isso que hoje, quando saía do Zaffari e se armou o temporal e as pessoas apavoradas esperavam a tormenta baixar a guarda embaixo do telhado do hall de entrada do supermercado, mantive o passo firme e saí sorrindo, caminhando normalmente. Não sei se estranharam, se me olharam, não vi. A chuva começou a ficar cada vez mais forte, dobrei minha bolsa aberta porque o zíper estragou e eu não queria que entrasse água, apertei o passo, o vestido enxarcado estava grudando nas coxas e os cabelos crescidos molhados empapando as costas. A chuva atacava em salvas de vento, comecei a ver embaçado porque, rindo e correndo louca pelo bairro, engolindo a água que escorria sobre o rosto, a lente de contato do olho direito deslocou, e eu sou míope o suficiente para sentir muita falta dela. Na corrida vi uma mãe com duas filhas esperando embaixo do toldo de um cabeleireiro que a chuva passasse, então sorri para elas. As meninas pareciam surpresas. Continuei correndo até abrir o portão do meu prédio e torcer um pouco a barra do vestido antes de entrar no saguão. Deixei rastros de poça por aí, abri a porta do apartamento e escorri pelo corredor, já toda liquefeita, lembrando que já não moro mais “em casa” para poder pedir que alguém me alcance uma toalha quentinha. Larguei as sacolas no piso do banheiro, entrei na banheira e tirei a roupa que pesava, liguei o chuveiro morno. Pensei então que, poxa, que trabalho secar tudo depois. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo “trabalho” já restringiu oportunidades demais na minha vida. Que “trabalho” depois me secar, que “trabalho” lavar o sapato. Tem gente que é tão apavorado com a idéia de se molhar que parece até que não secaria de novo jamais! Achei engraçado.

Embaixo do chuveiro, enquanto a chuva lá fora dava espaço para o retorno do sol, me senti bem como há tanto tempo não sentia. Inebriada de lembranças, senti minha alma cintilar. Leve.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

2003



Era uma noite de lua nova e vento gelado. Saí para o pátio do convento, envolta em uma atmosfera algo misteriosa. Havia muitos conhecidos e desconhecidos lá, reunidos. Recém havíamos jantado, e tinha início a programação noturna – que nada tinha a ver com as irmãs do convento, que apenas nos cederam aquele espaço incrível. Lá fora havia um gramado, uma área muito grande. Mais adiante estavam muitas árvores e uma floresta fechada. O silêncio preenchia a alma, as estrelas no céu eram muitas – todo o encanto de um lugarzinho no meio do nada. Ao aproximar-me dos outros, me foram passadas as instruções. Deveríamos ficar em fila, adultos e adolescentes, misturados, colocando uma das mãos sobre o ombro de quem estivesse em frente a nós.
- Vocês caminharão em linha reta – disseram. De olhos fechados. Haverá uma área em declive, vocês precisam descer devagar. Ao final, chegarão a uma clareira, onde ascenderemos uma fogueira. No percurso, algumas pessoas estarão lá cuidando para que não se desviem do caminho. Não é permitido abrir os olhos até chegar à clareira.
Coloquei as mãos sobre o ombro do seguinte. Os primeiros passos foram cambaleantes, mas tentei não abrir os olhos. Quando os tênis começaram a resvalar no declive, vez ou outra alguém tocou meu ombro livre me recolocando na linha certa. Parecia um caminho estreito, de mata fechada. Os grilos cantavam e pairava um cheiro doce e úmido de mato e terra. Após tantos minutos que não sei precisar, abri os olhos. Uma fogueira enorme iluminava uma pequena clareira. Tirei os tênis e sentei. Alguém me emprestou um cobertor, que coloquei em cima dos ombros. Me sentia muito bem. Era como se tudo aquilo me levasse a algo mais perto de alguma verdade profunda antes ignorada. Ao redor da fogueira, em silêncio, na noite fria e ventosa, uma paz me habitava. Um amigo começou uma massagem nos meus pés, e falamos sobre confiança. Todos falaram sobre confiança. Quantas vezes se pode confiar em alguém assim, de olhos fechados?

sábado, 27 de agosto de 2011

Mais um dia de chuva


Não é quinta-feira, mas é dia de feira e chove. Te imagino comigo, na minha casa, na nossa cidade, em cima da cama do quarto de janelas sem cortinas, luzes apagadas e o dia cinza, abraçadas como naquele dia em que a idéia talvez fosse terminar tudo e que no fim se armou um temporal e voltamos correndo na chuva ensopadas para a minha casa, e eu te emprestei minha toalha de banho pela primeira vez. Lembro dessa sensação reconfortante de frio e conforto e carinho e pazes feitas. Dos teus olhos castanhos resplandecendo em toda sua plenitude frente à claridade desbotada em volta, como na primeira quinta-feira em que mordias os lábios, nervosa, de blusa azul e umas espinhazinhas na testa e muito branca, enquanto eu tipicamente rasgava o guardanapo, dobrava o canudo e quebrava os palitos de dente da mesa da cafeteria do supermercado do Bom Fim. A idéia sempre foi dizer-te que não e ir-me embora, mas diante de ti muito branca de azul marinho e olhos amendoados, eu nunca soube o que são olhos amendoados, acho que os teus são amendoados, eu não consegui dizer o que era para dizer e tentei tantos eufemismos que não disse nada enquanto fazia uma estatueta pós-moderna com o guardanapo, o canudo, o palito. Meu sentimento era branco, fusão de todas as cores, tu bem sabes o quanto eu não-gostava-de-ti-gostava-de-ti, aquelas situações de prognóstico reservado em que te atam na cadeira, jogam uma criança untada com resina na tua porta, entendes, coisas as quais só se pode aceitar, porque não existe outro destino, não se pode fazer mais nada. Passaram-se muitas quintas-feiras, tantas que paramos de contar - eu parei no 16, e tu no 19 porque é teu número preferido, na verdade eu não sei em que numero tu paraste, mas gosto de imaginar que foi no teu preferido, e muitos dias ainda serão chuvosos, e virá de novo essa sensação de pele molhada que secou, a camiseta verde encharcada no bidê do banheiro, tu com a toalha roxa no cabelo laranja, os olhos às vezes amendoados. Talvez ser amendoado não seja uma característica transitória, eu não entendo de amêndoas nem dos frutos secos que tu gostas de comer, no máximo eu te compro um saco de amendoins japoneses na feira do sábado e te dou como se tu fosses meu elefante particular porque nos desenhos animados eles sempre comem amendoins. Então vamos dizer que seja uma característica transitória que se enalteceu naquela quinta-feira em que te ofereci uma carona no meu guarda-chuva com capacidade para cinco pessoas porque pensei que teus brincos que combinavam com o colar que combinavam com a blusa que combinavam com tudo porque tu gostas dessas combinações monocromáticas faziam de ti indefesa. Só pude constatar o equívoco passos depois quando tua força de Sansão, eu deveria ter desconfiado dos teus cabelos compridos, ignorou todo o contexto do colar, do brinco, dos lábios que se mordiam nervosos, e me agarraste no meio da rua no meio da chuva a girar, a girar, que maravilha, que maravilha. Naquele momento tudo estava cinza e havia muito barulho dentro e fora e em volta, e eu não poderia prever que meia eternidade depois - meu infinito inicia para além de um ano, e quando chegarmos aí já teremos sido felizes para sempre -, eu não poderia prever que meio parassempre depois eu estaria lembrando disso desse jeito enternecido enquanto a chuva inunda uma cidade estrangeira muitos quilômetros longe do Bom Fim. Bom Fim.

sábado, 9 de abril de 2011

Atualidades


Ando dolorida da rotina pesada em que eu mesma me meti. Mas feliz, lépida formiga operária, sabe como eu gosto de me cansar até a última gota e desfalecer sob os lençóis sem nenhum prelúdio introdutório aos sonhos confusos. Dormir e acordar, tocar o dia, tem sido assim. Você faz algo que não gosto, ignoro, mudo de assunto, vou dormir e acordo bem; então recordo, penso por um segundo, mas logo durmo de novo, já é 6a feira, e de novo, é domingo e o seu perfume me inebria por aquelas horas de doces esquecimentos novamente. É isso. Tenho me deixado levar - mas não sem opor um cadinho de resistência para fingir desfrutar de algum controle. Você me surpreende todos os dias com uma compreensão inesperada e uma aceitação sobrehumana de todos os meus defeitos, e eu não posso deixar de ficar impressionada, sem entender o seu por quê. Estou fascinada com os mecanismos do seu manejo interpessoal: atiro um brinquedo pra longe e lhe espreito para ver se você tratá de volta pra mim. É assim. Você sempre me pega pela mão e me puxa lomba acima enquanto eu esperneio que meu bico caiu. E no final da ladeira você se chateia com meu escarcéu, mas me explica calmamente, mais uma vez, todas as suas certezas. Eu, contrariada, braços cruzados, reviro os olhos e faço careta, depois vou dormir acalentada por seu pulso firme, envolvida em toda a sua afeição. E de alguma forma sorrindo. Então durmo e acordo e está tudo bem de novo até o final do dia. “Até o fim dos dias?” “Você é tão otimista”, e rio da sua petulância.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Gula

Você é aquele lanche gordinho gostoso que eu gostaria de deixar para depois e pedir que o cara da loja embale pra levar, mas sou tão ansiosa que ele mal empacotaria e eu já devoraria no caminho ainda que não sentisse fome. Enquanto isso, para você eu sou aquele doce que você olhou mil vezes na vitrine, até que um belo dia teve uma brecha de tempo, entrou, pediu e ficou olhando com um sorriso guloso.
Estamos neste ponto agora. O ponto em que vou perder para a ansiedade e lhe devorar no caminho. O ponto em que você, de barriga cheia, vai comer o doce que parece tão bom e depois, passando mal, se arrependerá e dirá que foi indigesto, que você tinha de ter dado um tempo entre uma refeição e outra, e eu vou sofrer e olhar para você lhe achando um baita lanche e pensando que, poxa, eu deveria ter guardado para o dia seguinte, para mês seguinte, deveria ter colocado você no freezer.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Abortar.



Do latim, "ab" (não) "ortus" (nascimento). Não-nascimento.

Você foi um aborto incompleto espontâneo. Poderia me sentir culpada pela tragédia, mas estou certa de que não bebi, não fumei, estava ali comento chocolate e tendo náusea como toda a grávida saudável, acarinhando a próprio abdome gravídico com amor. Tracei o desenho dos lábios e o ângulo perfeito da curvatura dos cílios da vida que eu nutria, imaginei as cócegas que seus risos fariam aos meus ouvidos, tricotei incontáveis pares de sapatinhos para seus pezinhos minúsculos. Até começar a sangrar.
No começo era um líquido rosado, depois era tanto sangue que, aterrorizada, não quis sequer olhar para o chão que atrás de mim era deixado a cada passo desesperado que dei até minha bolsa, meu celular, até a porta de saída. O que escorria pelas pernas sem compressa nenhuma segurar, e corri para o hospital preocupada, mas sem querer saber de nada. Besuntada de gel na barriga como tantas outras vezes, porém agora sem estampar sorriso algum, e o obstetra com voz grave e tom solene fez minha garganta trancar. Não era mais possível ignorar o chão que deixava para trás, a evidência se fez e na minha vertigem tudo era coberto de sangue.
De volta para a casa, chorei agachada na banheira como em todas as minhas pequenas tragédias, e desde então minha vida tem sido eliminar restos placentários.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dos cacos.




Os vidros estilhaçados aos berros hoje ali, em cima do muro que nos separa. Pontudos, transversos, linha de frente – avança e te rasgo toda. Até o osso. Até a alma. Guardaria porém nas arestas sangrentos restos da tua carne – exemplo cruento concreto indiscreto do meu aviso prévio. Rejubilar-te-ias na minha punição, tu que adoras te jogar aos vidros. Caminharias, então, para longe, o sangue coagulado grudado na pele, satisfeita. Estás sempre ali, em contemplação, desejosa de mais dor. Certa vez contemplavas em regozijo o efeito reluzente daquilo que já foi vaso de flor. “Os vidros quebrados podem compor um vitral”, disseste, como se entendesses de vidros. Logo tu que nunca foste transparente.

(o vidro se estilhaçou aos berros, senhora, e eu não sei pintar vidro, não entendo de vitral. Mas sei construir muros. E tu sabes passar dos limites.)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Mostra-me teus caninos.



Estava em uma biblioteca enorme, escura, com escadas de caracóis, aprendendo na prática o que significava tédio a despeito do que me cercava, fazendo algum trabalho. Estava lá, cansada, a roupa apertando, querendo ir para casa, quando por alguma razão entendi que havia ganhado um cachorro. Eu não queria um cachorro, nunca quis um cachorro, ele estava lá. E quando cheguei em casa a porta estava aberta, meu deus, quem deixou a porta aberta, o cachorro pode entrar (minha preocupação nunca foi o cachorro sair). Cheguei cansada, roupa apertando, sapato apertando, coração apertando, entrei. De longe o vento e os jornais voando, entrei no corredor e não tinha mais lar – o cachorro no meio do tornado, feliz, abanando o rabo no fiapo que sobrou do meu tapete branco. Era um labrador cor-de-creme, lépido e serelepe. Fiquei arrasada, mas não poderia culpá-lo. Era só um cachorro brincando de destruir tudo o que conquistei. Era só um cachorro invadindo meu lar e destruindo minha vida sem que eu tivesse pedido sua companhia. Chorei o choro de leite derramado, agachada no chão, incrédula e impotente. Eu nem queria aquele cachorro, por que me deram o cachorro, quem deixou a porta aberta, tudo o que eu construí, como vou pagar, e eu nem posso sentir raiva dele, rabo abanando, é só um cachorro.

Ontem, semanas após o primeiro ocorrido, cheguei em casa e havia outro cachorro ali. Estranhei, que cachorro é esse, vamos colocar ele porta afora. Segurava minha pesada bolsa impacientemente, não quero esse cachorro aqui dentro, quero minha paz, estou cansada e a bolsa pesa. Eu sei, posso esperar ele ir embora sozinho, mas eu quero agora. Eu quero agora e a casa é minha. Fitei o cachorro com impaciência, não quero esse cachorro aqui, que cachorro é esse. Uma voz distante e feminina disse meu nome, vírgula, não te mete, o cachorro morde, deixa ele aí. Não, agora eu sou do tipo que tem medo de cachorro, quero que esse bicho saia daqui agora, quero a minha paz. Me aproximei do cachorro socadinho de focinho quadrado e olhos puxados, rosnei, rosnou, e vi seus dentes pontudos. Vi seus dentes pontudos, e um lampejo de sensatez me passou a mente, deixo o cachorro aqui, mas não, a casa é minha, ora agora o que é isso. Peguei o cachorro entre minhas costelas e meu braço direito dobrado, com força, raiva e decisão impulsiva, joguei ele para fora pela porta da frente. Mal me recompus, e ele voltou mostrando os dentes em um sorriso sádico. Senti medo e ódio, desgraçado, agora eu te tiro daqui. Meu ódio aumentava no peito, e, em um ímpeto cruel, machuquei, gritei, a raiva me afogueava o rosto, machuquei, rosnou e mordeu. Tranquei o monstro no banheiro, e ele destruiu a porta. Um calafrio me perpassou o corpo, e senti medo. Assustada, irritada, bicho desgraçado, segurei ele com força, enquanto ele se retorcia e me cravava unhas e dentes, rosnando. Bicho desgraçado, o atirei do 6o andar. Pronto. E se ele morrer, não reconhecerei minha crueldade e violência, não quero ver, não queria ferir assim, não queria, deus, matar, ele não tem culpa, é um cachorro; mas a casa será minha de novo, aquele cachorro odiável, indesejado; mas ele pode voltar, ele já destruiu a porta do banheiro, ele pode voltar e me ferir. Era minha subjetividade tripartida. Segundos de desespero e calmaria inimaginavelmente fundidos. Quando ele ressurgiu. Desesperada, corri pela casa, chamei tio, tia, irmão, mãe, por favor me ajudem, não sou forte o suficiente, ele está voltando. Então o cachorro virou um homem. Um homem gordo, de pele oleosa, odioso e repugnante. Seus olhos mudaram de brilho ao ver meus familiares. Cabisbaixo, chorou e contou seus piores dias, enquando eu espiava tudo, ainda receosa e desconfiada, da porta do quarto. Contou seus piores dias, me senti tocada na pele enquanto o coração ainda pulsava de raiva, medo, rancor. Tocada na pele, seus piores dias não me penetrariam, entretida no meu egoísmo. Contou seus piores dias. Eu tive pena e raiva. De mim, do homem. Talvez não fosse mais machucada, a história dele era triste, mas que horas mesmo ele ia embora.
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Não sei por que invades meus sonhos ornando tantos pêlos, garras e dentes.

domingo, 17 de outubro de 2010

Bhagavad-Gita como ele é.

Capítulo 6, verso 5.

"Com a ajuda de sua mente, a pessoa deve libertar-se, e não degradar-se. A mente é amiga da alma condicionada, e é também sua inimiga."

"O propósito do sistema de yoga é controlar a mente e afastá-la do apego aos objetos dos sentidos. Nesta passagem, enfatiza-se que a mente deve ser treinada de tal maneira que possa livrar a alma condicionada do lodaçal da ignorância. Na existência material, a pessoa sujeita-se à influência da mente e dos sentidos. De fato, a alma pura está enredada no mundo material porque a mente envolve-se com o falso ego, que deseja assenhorar-se da natureza material. Portanto, a mente deve ser treinada para que não se deixe atrair pelo brilho da natureza material, e aí então a alma condicionada conseguirá salvar-se. Não se deve cair vítima da atração aos objetos dos sentidos. Quanto mais alguém se deixa atrair pelos objetos dos sentidos, mais se enreda na existência material. A melhor maneira de desvencilhar-se é sempre ocupar a mente na consciência de Krishna."

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Admissibilidades



Conforme exordial acusatória,
- Primeiro Fato: das Pantufas.


Sorria desgrenhada com dor de cabeça e a barba por fazer – na verdade não tenho barba. Minha cara de sono, a barriga grunhindo as 4 horas passadas desde o primeiro “vamos levantar”. Sentei-me na cama apertando os olhos sem óculos tentando focar teu corpo que levantara e agora estava procurando um casaco. Parecia fazer frio. Desconhecíamos o sol lá fora, trancafiadas a sete (duas) chaves no apartamento, giradas uma vez cada na noite anterior. Colocavas o casaco, não, um blusão ou uma básica cheia de bolinhas que mais tarde fiquei arrancando da tua roupa no sofá, e foi quando olhei teus pés, apertando os olhos, e tu calçavas minhas pantufas. Tu não entenderias, mas isso fazia de ti fatalmente imbricada no que é meu, mais que o resto de ti que ainda se faz presente nas mãos que tanto te alisaram e que tanto me esmerei em não lavar direito pra te guardar um pouco mais. Estavas ali, calçando minhas pantufas, me ouvindo confusa, suada, tendo pesadelos; histérica com a sujeira da casa. Estavas ali achando tudo engraçado e me contando sobre as tuas galinhas, a capoeira, as flexões, tua lista de romances aleatórios. Com os pés nas minhas pantufas, não parecias te importar com coisa alguma, nem com o barulho dos aviões que eu estranhara antes, nem com meu pijama nada atraente, e então eu podia admirar as efélides sobre tua tez branquinha enquanto o sol das duas da tarde já entrava pela janela.

domingo, 8 de agosto de 2010

Dia dos Pais


Entrei no meu quarto com uma vizinha, meus olhos inchados e doloridos de tanto chorar, mas ainda tão confusa – em nenhum momento deixei de ficar confusa desde então. Liguei a luz e tudo estava perfeitamente arrumado e tão vazio. Tão vazio. Trazia em minhas mãos flores alaranjadas que colhi no pátio porque me disseram para escolher as mais bonitas para você. Eu achava que se colhesse as minhas preferidas você saberia que eram minhas. Então entrei no meu quarto para lhe escrever uma carta que lhe dissesse o quanto eu o amava, não como as outras que já lhe havia entregado tantas vezes chamando você de amado e idolatrado porque eu estava aprendendo o hino do Brasil e achei bonito, não como essas, uma mais séria e definitiva, porque me disseram que colocariam no bolso do seu paletó. Eu estava chorando tanto, mas era tão urgente demonstrar ainda mais uma vez, a última vez, que amava você tanto, tanto, mas ainda reclamar que você mentiu e não ficou velho. Olhei em volta procurando um papel de carta bonito e então enxerguei um lápis com um peixe de borracha na ponta, você quem me deu. Então solucei tanto e alguém veio me dar um copo de água com açúcar de novo e um remédio, mas é que ninguém poderia entender, foi seu último presente. E eu não tinha gostado do presente, achei o peixe feio, mas eu não teria coragem de lhe dizer tampouco reclamar, foi um presente tão simples mas com tanto amor. Eu não tinha gostado do presente, me senti tão culpada, seu último presente. Um bom tempo contemplei o peixe de borracha, e foi a última vez que o vi. Partimos de madrugada para outra cidade e deixamos aquela casa cheia de você para sempre. Porque você nos deixou para sempre.

terça-feira, 20 de julho de 2010


É incrível como a personalidade das pessoas se dissolve até nas minúcias aparentemente banais; pois foi na sutileza de pentear meu cabelo para trás que aprendi a diferença entre você e os outros. Você sempre penteava meu cabelo para trás. Não parecia notar que eu preferia repartido no meio, simplesmente penteava para trás apressadamente como fazia com o seu próprio. Me olhando no espelho eu achava esquisito, mas acabava gostando porque era o seu toque especial. Me fazia perceber que apesar de não atentar para as minhas preferências você então imprimia em mim sua própria preferência compartilhando seu penteado predileto, e isso me trazia uma felicidade nova. Era o seu toque especial, o seu penteado. E é claro que quando você maquinalmente me penteava apressado você não poderia imaginar o que me imprimia. Mas hoje quando eu estava no cabeleireiro e ele acidentalmente penteou meu cabelo para trás lembrei você e meus olhos se encheram de lágrimas. Eu sei, já faz treze anos que você morreu. Mas era o seu toque especial.

sábado, 17 de julho de 2010

As pessoas com quem decidimos nos relacionar são artifícios para o autoconhecimento. Sem demerecê-las - um caso em que o artifício é essencial. É como explicitar (x+y)² em x²+2xy+y² sendo que nunca alguém nos dará o valor das variáveis e nos perguntaremos que raios fazer com isso. São aquele 2 pelo qual multiplicaríamos a primeira equação
para desvendarmos nossos mistérios latentes materializados em incógnitas e que no final o artifício vira parte da equação e faz tão parte dela que nem lembramos mais de que se tratava de um artifício nem de como ele surgiu. Na verdade o que acontece é que cada um traz consigo suas próprias variáveis e quando nos damos conta temos também z,r,s e ainda que descubramos x=-4 e y=-5/3 isso já virou obsoleto e nem faz mais diferença.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Faz um tempo venho lembrando-me de ti. Passados tantos anos - como pude te esquecer por tantos anos? Recobrada a razão, tu reapareces de orelhas coladas no meu ventre que há de inchar. Depois somes, e te procuro também no beijo de rosto molhado demais que me deste no supermercado logo após ter perguntado meu nome – eras tu? Não suporto estas ilusões. Tu és sempre quem virá, mas tu nunca chegas. Quando deito na cama tarde da noite, satisfeita na solidão de te esperar, me pergunto se os terremotos no caminho acaso separaram meu chão do teu.

sábado, 5 de junho de 2010

Tudo pode dar certo


Quando procurei o lápis de olho marrom para realçar meus olhos cor de sei lá o quê, mas sem chamar muito atenção, porém não achei já que nesses dias de crise nada está no lugar, nem lápis de olho nem pensamentos, e tive de escolher o preto que me exagera um pouco, para então dar uma última olhada no espelho, descer as escadas, atravessar a rua na chuva, pegar um táxi e te encontrar... Quando tudo isso aconteceu e descobrimos que sou mais perdida que cego em tiroteio (“Desculpe o chiclê, Boris”) e que enfim o filme programado não estava lá, e então escolhemos outro que deu mais certo que o esperado e me deixou pensativa, e depois pudemos conversar por algumas horas. O que quero dizer é que desde o lápis de olho eu sabia que não seria aquela a te dar o beijo previsível ao chegar em casa. Não seria aquela a cumprir protocolos, estou farta do convencional supérfluo. Estou farta de pseudoromances e de amores da minha vida ao segundo encontro. O que não pode mais ser é atropelar tudo por uma idealização e descobrir que o objeto dessa idealização é nada mais que preguiçoso, malvado, desleal, desrespeitoso, depois de toda a entrega. Dormir e acordar casada, com filhos, gorda e cheia de estrias, e agora você com essa, desleal, sem respeito, malvado, preguiçoso. Não sou intensa, já falei isso. Não gosto de quem vive intensamente porque grande parte das vezes significa empurrar tudo para baixo do tapete e sair exagerando por aí sem pensar, para se sentir vivo, mas isso é porque se é morto por dentro. Quem não é morto por dentro não precisa desses artifícios atordoados. Não precisa correr para preencher vazio nenhum pois não há vazio algum. E desde que eu estava em casa procurando meu lápis marrom eu já sabia que não preencheria o protocolo. Até o amor virou programático-performático, e eu já não quero mais. Até o amor é repleto de efeitos especiais, sangue e gritaria como nos filmes de ação, e é também nos filmes de ação que quando alguém morre os outros personagens choram no máximo uns segundos e esquecem o morto por completo. E eu já não quero mais. Meu tempo é arrastado, mas saboroso. Não há nada de morno nisso. Há quem não aprecie os extensos prelúdios, eu sei. Mas há vezes em que o prelúdio era tudo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Momentos em que eu gostaria de ter uma máquina fotográfica em mãos

Esquina da Vasco da Gama com a Fernandes Vieira. De bruços, por cima de sacolas de lixo abertas esparramando tudo, a mendiga atirada apoiava a cabeça com uma das mãos que segurava uma caneta entre os dedos, enquanto com o outro braço segurava um livro amarelado escrito em letras miúdas.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

De quando você voltava para sua casa.

(escrito em maio de 2009)

Você foi embora. E eu fiquei aqui com minha cara de tacho mordendo a embalagem do desodorante e pensando que torturo você e te maltrato sem saber por quê mas repleta de fundamentos. Com minha razão e minha frieza – você sempre desconfiou das minhas luvas. O problema é que essas coisas tomam conta de mim e quando vejo estou cheia de idéias e não aceito que você me esquente as mãos.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Aquilo que você já sabe.

(Escrito em 13/07/09)


Você me convida para um café, um sorvete, cinema, gasômetro. Há por lá um estacionamento novo, mais seguro, que você só agora descobriu. Então poderíamos ir até lá, tomar um café que não seja nem tão caro porque você bem sabe quanto sou mão-de-vaca nem tão amargo porque nós bem sabemos como você só toma café para me acompanhar. E na despedida não seria necessário que você entrasse no carro com muita pressa, passasse o cinto de segurança, errasse, e então partisse com o carro mesmo assim e só quando ele já estivesse andando tentasse o cinto de novo e pudesse respirar com um pouco de alívio – mas não com todo o alívio –, e logo não seria necessário que eu ficasse ressentida dos carinhos que não trocamos porque você morreu de medo mesmo dentro do estacionamento que não lhe parecia suficientemente seguro. Agora, muitos meses depois, você descobriu um estacionamento seguro e o que me é favorito, então sabe adequadamente me convidar para um sorvete e fazer a ressalva sobre minhas extremidades geladas com a mesma explicação que um dia lhe dei tentando incutir-lhe um pouco de minha parca fisiologia-patologia. É assim que você também pode me convidar para o cinema e acertar no filme, porque já aprendeu a entender que sempre me apetecem tuas escolhas francesas, ainda que eu fosse gostar de filmes de outras nacionalidades também. Você sabe de tudo que me é idiossincrático e também do que me é comum, e é por isso que você deve saber que apesar de minha frieza que controlo com luvas e poupando palavras seus convites me tocam, porque é explícito como nunca foi que temos as mesmas vontades e gostamos dos mesmos programas e etc e etc e é claro que eu só poderia sentir saudades disso apesar dos seus defeitos, ou melhor, das suas características que me desagradam e que levaram tudo a ruir. O que acho estranho, apenas, é que depois de tanto tempo você ainda tenha esperanças contra minha teimosia e método. Você sabe que eu não aceitaria, mesmo que não entenda ao certo o por quê e fique com raiva por dizer que me baseio no passado e que um dia pode ser diferente. É verdade, não acredito na mudança, mas meu n amostral é gigantesco, e você sabe o quanto gosto de fundamentar-me em evidências. Mas talvez eu devesse falar a sua língua agora. Talvez eu devesse simplesmente dizer-lhe que sair com você agora é como olhar sua escova de dentes que ficou no armarinho por um descuido qualquer e lembrar de você escovando os dentes ao meu lado e logo em seguida saindo de perto de mim por não suportar como eu faço barulho. É como estar de frente para essa escova, lembrar disso e de tantas outras escovas que usamos pela casa, rindo ou reclamando, e de como eu era feliz com isso. Não quero lembrar disso porque me faz mal, me faz triste, e eu me baseio em evidências de um n gigantesco que certamente me levará a um p<0,05 , de que chafurdar no que sentimos é uma grande idiotice se também sentimos e dissemos outras coisas que impedem que tudo isso volte, então o correto, p<0,05 , é que nos baseemos na escolha racional que provou com um intervalo de confiança compatível e uma puta relevância clínica que acabou, está acabado, e não tem mais como voltar atrás.