terça-feira, 25 de novembro de 2008

A Dupla Vida de Veronique - Tempos de Samsara

(Escrito em alguma data há tempos atrás)


SAMSARA

O que me dói é ver-te entre lágrimas e sombra. Dói encontrar-te por aí nas ruelas e subsolos imundos, roupa branca, pele clara, alma doce, agora enlamada, descabelada, a esconder-se sob marquises dessa cidade Samsara. Tu, senhora dos tarôs e das magias. Tu, que enxergas além dos céus e dos corpos. Tu, Veronique, na cidade de Samsara. Dói. E eu, a quem foi dado o talento de enxergar possibilidades e potenciais, sofro junto, no deserto, tuas mordaças a prenderem meus pés. Porque te enxergo, roupa vermelha, pés descalços queimando na areia dos desertos, para longe de Samsara, vindo até mim. Te enxergo, cabeça erguida, semblante iluminado. Tua força emanando por cada poro da tua pele, e cada raio de sol que tu refletes enaltece tua figura incrível. És Sabina, dona do teu poder. Para além da prisão de vidro, a alma chegando à superfície e transbordando. Livre.


Em Samsara, entre sombras e sujeiras, te sigo, louca e alucinada. Te procuro, Veronique, incessantemente. Sento-me nas fontes de água salobra, pés descalços e pretos, braços marcados por unhas a coçar dessas pulgas que me mordem e comem. Sentada nas fontes, e minhas lágrimas vão ao encontro de seus iguais, água salobra das fontes – porque aqui em Samsara todos choram. Estou aqui, sem te encontrar, desejando-te loucamente. Estou doente, e tu tens febre. Estou doente, alucinada e com os pés pretos. Caminho entre as luzes dos postes de querosene a tremular chamas, te encontro em desgraça. Quero um abraço, te puxo pelos ombros, afundo unhas em tuas costas, te mordo o pescoço. Tu sentes a vertigem e tentas te desvencilhar do meu corpo que te invade com unhas, mãos e dentes, me empurras, não consegues te desvencilhar, afundo unhas em teus braços que foram seda, afundo dentes em teu pescoço que foi algodão-doce, tu me empurras, me larga!, maldita! Minhas mãos abertas de dedos que se embrenham em teus cabelos desgrenhados a te puxar, tu viras o rosto para o lado, maldita!, olho para baixo porque tu pisas em meus pés pretos, tu me empurras pelos ombros, eu cambaleio a quase cair, puxo tuas saias enormes e brancas e sujas, tu me odeias, maldita!, te rasgo a blusa com as unhas imundas e compridas, tu me cospes o rosto, empurro-te contra as grades das jaulas dos bichos, tu me empurras de volta, me puxas os cabelos, te piso os pés e te atiro no chão – maldita! Invado-te porque estou doente, cobro teu corpo porque estou podre.

Teu ódio é antigo. Eu tinha outra, a odalisca das falsas palavras, mulher corrompida. Eu sei. Tu me repugnavas, Veronique, e tinhas ciúmes. Vieste a nós, que nos devorávamos em volúpia num monte de feno e carrapatos. Vieste a nós, enlouquecida, olhos chorosos, apertando os dentes em desprezo, atiraste-me pedras. A mulher gargalhava, não tinha mais dentes, e seus amigos diabólicos me seduziam e cegavam. Tuas pedras me acordaram, Veronique, e corri atrás de ti, os diabos me puxando os pés, corri até ti, mas tu me fechaste a porta – te trancaste numa torre sem me atirar trança nenhuma. Os diabos me subiram as pernas, me aguçaram o sexo, inebriaram-me num torpor de energias que arrastam, e eu gargalhei sem dentes, mulher corrompida, atirada ao feno, gritei falsas palavras em volúpia. A odalisca me consumia e tua lembrança estava longe. A odalisca me consumia, e seus animais diabólicos me inebriavam, eu não sentia tua dor, pela primeira vez. Pela primeira vez, dissociada de teu sentir, Veronique. Perdida e caída nesta cidade do além-chão. Corri até ti, pés pretos e desgrenhada, e tu me fechaste a porta da torre sem me atirar as tranças. Por uns dias te esqueci, inebriada em volúpia. Eu sei, tu te digladiavas e berravas já rouca do alto da torre – o eco dos teus pavores a estourar teus próprios tímpanos. Digladiavas com teus demônios e sofrias. Corri aos braços da odalisca de olhar provocante, deitei-me neles buscando ilusões. Foram os primeiros braços dos tantos em que busquei Veroniques. Empenhada em esquecer-te, atirei-me de mulher em mulher, enquanto tu me observavas do alto da torre a reprovar-me. Machuquei-te com isso e de propósito, Veronique, porque te quis desde o primeiro instante, ainda antes de cairmos em Samsara, e me doeu a impossibilidade de te ter. Me doeu, porque te queria tanto e não podia. Embalada por diabólicos seres que me subiam as pernas, aguçavam meu sexo, atirei-me de mulher em mulher, odaliscas e salamancas, enganando-me. De vez em quando tu descias da torre, dissimulavas, me ajudavas a esmagar as uvas, nossos pés pretos, sujos e sangrantes. As uvas para o vinho a entorpecer nossas noites, quando caminhávamos pelas ruas dos postes de querosenes. Tudo era torto porque dissimulávamos e distorcíamos. Cravávamos no peito as unhas do rancor, como na música. Rancor, pois em mim também doía a lembrança da porta da torre que me fechaste à cara, tranças jogadas para um monstro que te sugava o sangue, te pisava e batia – mas tu o aceitavas porque era somente por ti, e por ninguém mais, que ele subiria até o alto de uma torre. Ele te sugava o sangue e tu lhe entregavas o pescoço com paixão. Assim me dizias, Veronique, e isso muito me doeu.

DESERTO

Marcas roxas no meu corpo agora me contam essa história longínqua. Agora lembro, Veronique. Naquela noite, lampiões de querosene, deixei Samsara quando meu coração lembrou que meu espírito era maior do que a mesquinhez de te rasgar as roupas e te atirar no chão. Teu rosto reluzente à luz dos querosenes, planície de lágrimas, teu peito a inflar e desinflar, a inflar e desinflar, a inflaredesinflar, teus soluços. Eu, monstra, suja, agarrando-te os punhos com violência, mordendo-te os lábios, e aquela música, aquela sinfonia, era uma noite, uma orquestra, tu em um xale rosa, teu perfume suave e doce, muito antes de cairmos na a cidade do além-chão. Muito antes dos pés pretos, cabelos despenteados, sombras e marquises. Soltei teus punhos, pedi-te desculpas, e tu fugiste para longe, embrenhou-te em Samsara. Vaguei uns dias por fontes e lágrimas, ralos e ratos, sem te encontrar. Cabisbaixa, olhos fitando o chão, vencida, fui seguindo a orquestra, o perfume suave. Vozes, de algum lugar elas surgiram e me disseram “Verônika, tu caíste e estás doente”. Sim, eu estava doente e suja, pés pretos, e horrorizaram-me as unhas ensangüentadas, roupas rasgadas, pele esfolada. Horrorizada, corri para fora dessa cidade construída dentro da prisão de vidro, cidade perdida e maldita. Veio o deserto, a saudade de ti, a fome e a sede. A estiagem que me fez definhar até encontrar esta cadeira de palha onde tuas mordaças me atam as pernas, onde o sol me traz mais idade e dor. Estou aqui tentando me livrar daquelas lembranças sombrias, e te espero. Estou aqui e também sorrio. Estou aqui, depositando minhas crenças em ti, torcendo para que te lembres que nosso mundo não é só Samsara e prisões de vidro, para que te lembres das orquestras e dos xales rosas. Estou aqui sorrindo, tranqüila, voltando ao meu centro. Voltando ao meu centro, porque minha fé é a de que isso também te guie para este deserto. É minha fé. Ainda me dói não estar contigo, não poder afastar o sofrimento. Dói não poder te dar a mão e tornar leve a caminhada difícil, a tornar antiga a angústia de tudo isso. Mas estou aqui, acreditando em ti. Por vezes e vezes meu ímpeto foi buscar-te em Samsara, mãos dadas, te mostrar as areias quentes. Tuas mordaças atando-me os pés, rastejei em direção à cidade do além-chão, as vozes voltaram. “Veronika, também já tiveste medo”. Sim, também já tive este medo, Veronique, mas a liberdade é algo tão maior, ainda que queime os pés. Ainda que queime os pés, Veronique. Não é preciso esconder-se sob marquises nem ter o corpo sujo. Força, Veronique. Força. Tu chegarás em teu vestido vermelho, pés nas areias quentes, a queimar. Virás, sorriso no rosto. E estarás tão certa e tão segura que os moradores do deserto te aplaudirão – mas nem a eles darás atenção, pois seguirás só o que vier de dentro. Não mais os elogios do deserto, não mais as maldições e pragas dos habitantes de Samsara, que nos odeiam. E eu te enxergarei chegar, tão orgulhosa. Caminharei até ti, porque terei descoberto que as mordaças não eram tuas. Caminharei até ti, e nos abraçaremos por horas. Por horas, Veronika e Veronique. Verdade. Então buscarei na cadeira de palha o livro que li 100 vezes na tua ausência. E, abraçando-te novamente, depois de tê-lo mostrado, sussurrarei em tua orelha:
-O amor nos tempos do cólera. Te esperei todo esse tempo.

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P.S.: lembranças a Krzysztof Kieslowski.