sábado, 26 de fevereiro de 2011

Gula

Você é aquele lanche gordinho gostoso que eu gostaria de deixar para depois e pedir que o cara da loja embale pra levar, mas sou tão ansiosa que ele mal empacotaria e eu já devoraria no caminho ainda que não sentisse fome. Enquanto isso, para você eu sou aquele doce que você olhou mil vezes na vitrine, até que um belo dia teve uma brecha de tempo, entrou, pediu e ficou olhando com um sorriso guloso.
Estamos neste ponto agora. O ponto em que vou perder para a ansiedade e lhe devorar no caminho. O ponto em que você, de barriga cheia, vai comer o doce que parece tão bom e depois, passando mal, se arrependerá e dirá que foi indigesto, que você tinha de ter dado um tempo entre uma refeição e outra, e eu vou sofrer e olhar para você lhe achando um baita lanche e pensando que, poxa, eu deveria ter guardado para o dia seguinte, para mês seguinte, deveria ter colocado você no freezer.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Abortar.



Do latim, "ab" (não) "ortus" (nascimento). Não-nascimento.

Você foi um aborto incompleto espontâneo. Poderia me sentir culpada pela tragédia, mas estou certa de que não bebi, não fumei, estava ali comento chocolate e tendo náusea como toda a grávida saudável, acarinhando a próprio abdome gravídico com amor. Tracei o desenho dos lábios e o ângulo perfeito da curvatura dos cílios da vida que eu nutria, imaginei as cócegas que seus risos fariam aos meus ouvidos, tricotei incontáveis pares de sapatinhos para seus pezinhos minúsculos. Até começar a sangrar.
No começo era um líquido rosado, depois era tanto sangue que, aterrorizada, não quis sequer olhar para o chão que atrás de mim era deixado a cada passo desesperado que dei até minha bolsa, meu celular, até a porta de saída. O que escorria pelas pernas sem compressa nenhuma segurar, e corri para o hospital preocupada, mas sem querer saber de nada. Besuntada de gel na barriga como tantas outras vezes, porém agora sem estampar sorriso algum, e o obstetra com voz grave e tom solene fez minha garganta trancar. Não era mais possível ignorar o chão que deixava para trás, a evidência se fez e na minha vertigem tudo era coberto de sangue.
De volta para a casa, chorei agachada na banheira como em todas as minhas pequenas tragédias, e desde então minha vida tem sido eliminar restos placentários.