quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Chuva



Sempre gostei de chuva.
Quando criança, acreditava ser capaz de fazer chover. Queria me vingar de alguém ou provar meus poderes, saía para o pátio (da praia, da cidade, do interior – já morei em tanta casa que já não lembro mais) à procura de um graveto firme e razoavelmente grande. Seria minha varinha. Ia para um canto, olhando para o céu, e falava várias coisas, compreensíveis ou não, porque tinha mania de inventar línguas, acrescentando palavras mágicas aprendidas nos desenhos, abracadabras e afins. Às vezes me vestia de preto antes de procurar a varinha. Quando decidi acreditar em Deus – meus pais me deram a liberdade de escolher, me explicando que algumas pessoas crêem, outras não, e que cabia a mim escolher -, apelava também a ele. E, como vez ou outra choveu mesmo, achava que eu tinha esse poder secreto.


Meus pais me introduziram ao banho de chuva. Nunca me disseram aquelas frases proibitivas comuns a tantos pais, “não pode”, ”tu vais te gripar”. Na minha lembrança mais remota de um dia chuvoso, morávamos em uma pequena casa no fundo da casa do meu avô, separada desta por um pátio pequeno. Nossa casa tinha na parte de fora uma pequena trilha de lajotas, e meu pai me levou para lá quando chovia muito, e só lembro que ele estava passando xampu no meu cabelo e me ensaboando numa bica da calha que jorrava água da chuva sem parar. Fiquei perplexa porque não entendia muito o que estava acontecendo, talvez fosse mais uma confusão adulta tipo quando minha mãe esqueceu que tinha dado minha toalha de banho pra ser a toalha da nossa gata Mixo e me secou com a toalha da gata e eu tive que tomar banho de novo. Vai ver meu pai também houvesse se confundido, mas foi tão divertido que não perguntei nada. Depois disso eu sempre saía para brincar na chuva.


Por outro lado, meu irmão, sete anos mais novo do que eu, todo o santo temporal começava a berrar incessantemente. Não entendia por que ele tinha tanto pavor de chuva, de temporal, embora ele tenha tido a “má” sorte de ser pequeno em uma época em que chovia granizo com freqüência em Porto Alegre, e o quarto dele era do lado de uma sala com telhas transparentes de um material plástico (plástico?) barulhento. Chuva de granizo era um tiroteio em casa, potencializado pelas telhas especiais. Outro pânico do meu irmão era quando faltava luz. Era fácil saber onde ele estava, era só seguir o choro estridente. Se agarrava em alguém e não soltava mais até que a luz voltasse. Bem diferente de mim, que com a mesma idade achava essa uma ótima oportunidade para testar minha camiseta do Mickey que brilhava no escuro.


Uma das minhas brincadeiras preferidas no verão era quando minha piscina de plástico toda remendada com fita adesiva estava cheia, e eu nela brincando sozinha ou com as amigas. Aí, acaso uma hora começasse a chover, então eu pedia para a minha mãe que me deixasse ficar mais porque já tinha aprendido que quando chove a água da piscina fica mais quente. Eu me enfiava na piscina com a água até a boca, gritava “Mãããããe! Manhêêêê!!!” e pedia para minha mãe trazer um guarda-chuva. Talvez outras mães pensassem que atrairiam raio ou simplesmente fariam a criança sair de lá, mas a minha mãe ia para dentro da casa e voltava minutos depois com um guarda-chuva pra mim. Serelepe, como sempre, eu abria o guarda-chuva e tentava, de diversas formas, encaixar ele em uma das quinas da piscina de plástico. Era difícil, então tinha várias idéias para melhorar o design das piscinas de plástico, mas, no fim, apoiava ele na quina e continuava com a água cobrindo a boca. Assim me sentia escondida, protegida do mundo, vendo tudo, mas ao mesmo tempo completamente livre de apuros. Um momento especial e secreto. Como se fosse a sensação primitiva do momento adulto de chegar em casa sozinho e ler um livro gostoso.


Quando chovia muito no interior e a terra tipicamente vermelha embarrava as roupas por aí fazendo muita gente mal-humorada, às vezes faltava luz. Quando faltava luz era sempre dia de sopa. E eu adorava sopa. Não sei se adorava sopa e chuva e falta de luz por eles mesmos ou porque meus pais faziam tudo ser tão legal. Quando faltava luz, meus pais cozinhavam sopa juntos, e me lembro de diversas ocasiões em que nos sentamos na sacada de casa, comendo na mesa de branca de ferro, olhando a chuva na escuridão. Uma certa vez minha mãe estava fora quando faltou luz. Fazia muito frio, chovia e havia faltado luz. Então meu pai me convidou para fazermos uma supresa para ela. Acendeu a lareira e fez a janta, enquanto eu colocava a louça na mesa baixa da sala. E quando minha mãe chegou comemos juntos, conversando.


São muitas lembranças com chuva. Lembranças de criança, gritando na chuva e rindo e chutando poças d'água por aí com as primas, até lembranças adolescentes andando de bicicleta pela praia me enxarcando de água e barro e areia, depois lavando o carro da minha mãe de pés descalços na grama molhada. Tantas boas lembranças.


É por isso que hoje, quando saía do Zaffari e se armou o temporal e as pessoas apavoradas esperavam a tormenta baixar a guarda embaixo do telhado do hall de entrada do supermercado, mantive o passo firme e saí sorrindo, caminhando normalmente. Não sei se estranharam, se me olharam, não vi. A chuva começou a ficar cada vez mais forte, dobrei minha bolsa aberta porque o zíper estragou e eu não queria que entrasse água, apertei o passo, o vestido enxarcado estava grudando nas coxas e os cabelos crescidos molhados empapando as costas. A chuva atacava em salvas de vento, comecei a ver embaçado porque, rindo e correndo louca pelo bairro, engolindo a água que escorria sobre o rosto, a lente de contato do olho direito deslocou, e eu sou míope o suficiente para sentir muita falta dela. Na corrida vi uma mãe com duas filhas esperando embaixo do toldo de um cabeleireiro que a chuva passasse, então sorri para elas. As meninas pareciam surpresas. Continuei correndo até abrir o portão do meu prédio e torcer um pouco a barra do vestido antes de entrar no saguão. Deixei rastros de poça por aí, abri a porta do apartamento e escorri pelo corredor, já toda liquefeita, lembrando que já não moro mais “em casa” para poder pedir que alguém me alcance uma toalha quentinha. Larguei as sacolas no piso do banheiro, entrei na banheira e tirei a roupa que pesava, liguei o chuveiro morno. Pensei então que, poxa, que trabalho secar tudo depois. Mas, ao mesmo tempo, esse mesmo “trabalho” já restringiu oportunidades demais na minha vida. Que “trabalho” depois me secar, que “trabalho” lavar o sapato. Tem gente que é tão apavorado com a idéia de se molhar que parece até que não secaria de novo jamais! Achei engraçado.

Embaixo do chuveiro, enquanto a chuva lá fora dava espaço para o retorno do sol, me senti bem como há tanto tempo não sentia. Inebriada de lembranças, senti minha alma cintilar. Leve.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

2003



Era uma noite de lua nova e vento gelado. Saí para o pátio do convento, envolta em uma atmosfera algo misteriosa. Havia muitos conhecidos e desconhecidos lá, reunidos. Recém havíamos jantado, e tinha início a programação noturna – que nada tinha a ver com as irmãs do convento, que apenas nos cederam aquele espaço incrível. Lá fora havia um gramado, uma área muito grande. Mais adiante estavam muitas árvores e uma floresta fechada. O silêncio preenchia a alma, as estrelas no céu eram muitas – todo o encanto de um lugarzinho no meio do nada. Ao aproximar-me dos outros, me foram passadas as instruções. Deveríamos ficar em fila, adultos e adolescentes, misturados, colocando uma das mãos sobre o ombro de quem estivesse em frente a nós.
- Vocês caminharão em linha reta – disseram. De olhos fechados. Haverá uma área em declive, vocês precisam descer devagar. Ao final, chegarão a uma clareira, onde ascenderemos uma fogueira. No percurso, algumas pessoas estarão lá cuidando para que não se desviem do caminho. Não é permitido abrir os olhos até chegar à clareira.
Coloquei as mãos sobre o ombro do seguinte. Os primeiros passos foram cambaleantes, mas tentei não abrir os olhos. Quando os tênis começaram a resvalar no declive, vez ou outra alguém tocou meu ombro livre me recolocando na linha certa. Parecia um caminho estreito, de mata fechada. Os grilos cantavam e pairava um cheiro doce e úmido de mato e terra. Após tantos minutos que não sei precisar, abri os olhos. Uma fogueira enorme iluminava uma pequena clareira. Tirei os tênis e sentei. Alguém me emprestou um cobertor, que coloquei em cima dos ombros. Me sentia muito bem. Era como se tudo aquilo me levasse a algo mais perto de alguma verdade profunda antes ignorada. Ao redor da fogueira, em silêncio, na noite fria e ventosa, uma paz me habitava. Um amigo começou uma massagem nos meus pés, e falamos sobre confiança. Todos falaram sobre confiança. Quantas vezes se pode confiar em alguém assim, de olhos fechados?