quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Mostra-me teus caninos.



Estava em uma biblioteca enorme, escura, com escadas de caracóis, aprendendo na prática o que significava tédio a despeito do que me cercava, fazendo algum trabalho. Estava lá, cansada, a roupa apertando, querendo ir para casa, quando por alguma razão entendi que havia ganhado um cachorro. Eu não queria um cachorro, nunca quis um cachorro, ele estava lá. E quando cheguei em casa a porta estava aberta, meu deus, quem deixou a porta aberta, o cachorro pode entrar (minha preocupação nunca foi o cachorro sair). Cheguei cansada, roupa apertando, sapato apertando, coração apertando, entrei. De longe o vento e os jornais voando, entrei no corredor e não tinha mais lar – o cachorro no meio do tornado, feliz, abanando o rabo no fiapo que sobrou do meu tapete branco. Era um labrador cor-de-creme, lépido e serelepe. Fiquei arrasada, mas não poderia culpá-lo. Era só um cachorro brincando de destruir tudo o que conquistei. Era só um cachorro invadindo meu lar e destruindo minha vida sem que eu tivesse pedido sua companhia. Chorei o choro de leite derramado, agachada no chão, incrédula e impotente. Eu nem queria aquele cachorro, por que me deram o cachorro, quem deixou a porta aberta, tudo o que eu construí, como vou pagar, e eu nem posso sentir raiva dele, rabo abanando, é só um cachorro.

Ontem, semanas após o primeiro ocorrido, cheguei em casa e havia outro cachorro ali. Estranhei, que cachorro é esse, vamos colocar ele porta afora. Segurava minha pesada bolsa impacientemente, não quero esse cachorro aqui dentro, quero minha paz, estou cansada e a bolsa pesa. Eu sei, posso esperar ele ir embora sozinho, mas eu quero agora. Eu quero agora e a casa é minha. Fitei o cachorro com impaciência, não quero esse cachorro aqui, que cachorro é esse. Uma voz distante e feminina disse meu nome, vírgula, não te mete, o cachorro morde, deixa ele aí. Não, agora eu sou do tipo que tem medo de cachorro, quero que esse bicho saia daqui agora, quero a minha paz. Me aproximei do cachorro socadinho de focinho quadrado e olhos puxados, rosnei, rosnou, e vi seus dentes pontudos. Vi seus dentes pontudos, e um lampejo de sensatez me passou a mente, deixo o cachorro aqui, mas não, a casa é minha, ora agora o que é isso. Peguei o cachorro entre minhas costelas e meu braço direito dobrado, com força, raiva e decisão impulsiva, joguei ele para fora pela porta da frente. Mal me recompus, e ele voltou mostrando os dentes em um sorriso sádico. Senti medo e ódio, desgraçado, agora eu te tiro daqui. Meu ódio aumentava no peito, e, em um ímpeto cruel, machuquei, gritei, a raiva me afogueava o rosto, machuquei, rosnou e mordeu. Tranquei o monstro no banheiro, e ele destruiu a porta. Um calafrio me perpassou o corpo, e senti medo. Assustada, irritada, bicho desgraçado, segurei ele com força, enquanto ele se retorcia e me cravava unhas e dentes, rosnando. Bicho desgraçado, o atirei do 6o andar. Pronto. E se ele morrer, não reconhecerei minha crueldade e violência, não quero ver, não queria ferir assim, não queria, deus, matar, ele não tem culpa, é um cachorro; mas a casa será minha de novo, aquele cachorro odiável, indesejado; mas ele pode voltar, ele já destruiu a porta do banheiro, ele pode voltar e me ferir. Era minha subjetividade tripartida. Segundos de desespero e calmaria inimaginavelmente fundidos. Quando ele ressurgiu. Desesperada, corri pela casa, chamei tio, tia, irmão, mãe, por favor me ajudem, não sou forte o suficiente, ele está voltando. Então o cachorro virou um homem. Um homem gordo, de pele oleosa, odioso e repugnante. Seus olhos mudaram de brilho ao ver meus familiares. Cabisbaixo, chorou e contou seus piores dias, enquando eu espiava tudo, ainda receosa e desconfiada, da porta do quarto. Contou seus piores dias, me senti tocada na pele enquanto o coração ainda pulsava de raiva, medo, rancor. Tocada na pele, seus piores dias não me penetrariam, entretida no meu egoísmo. Contou seus piores dias. Eu tive pena e raiva. De mim, do homem. Talvez não fosse mais machucada, a história dele era triste, mas que horas mesmo ele ia embora.
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Não sei por que invades meus sonhos ornando tantos pêlos, garras e dentes.

domingo, 17 de outubro de 2010

Bhagavad-Gita como ele é.

Capítulo 6, verso 5.

"Com a ajuda de sua mente, a pessoa deve libertar-se, e não degradar-se. A mente é amiga da alma condicionada, e é também sua inimiga."

"O propósito do sistema de yoga é controlar a mente e afastá-la do apego aos objetos dos sentidos. Nesta passagem, enfatiza-se que a mente deve ser treinada de tal maneira que possa livrar a alma condicionada do lodaçal da ignorância. Na existência material, a pessoa sujeita-se à influência da mente e dos sentidos. De fato, a alma pura está enredada no mundo material porque a mente envolve-se com o falso ego, que deseja assenhorar-se da natureza material. Portanto, a mente deve ser treinada para que não se deixe atrair pelo brilho da natureza material, e aí então a alma condicionada conseguirá salvar-se. Não se deve cair vítima da atração aos objetos dos sentidos. Quanto mais alguém se deixa atrair pelos objetos dos sentidos, mais se enreda na existência material. A melhor maneira de desvencilhar-se é sempre ocupar a mente na consciência de Krishna."