sábado, 18 de agosto de 2007

O Menino do Chiclete

(escrito em agosto de 2006)

O menino do chiclete no carpete. Gente! Menino bom. Teve idéia uma vez, rasgou embalagem de um tabletinho, dois, três de chiclete, pôs fora o papel, tacou o resto na boca, mastigou muito, com força, quase doendo a musculatura mastigante. Tirou tudo da boca. Espichou bem toda aquela massa de chiclete com a mão suja de fazer carinho no cachorro, comer salgadinho e ir ao banheiro sem lavar as mãos. Subiu no sofá, esticou-se na ponta dos pés, enozou parte do chiclete no lustre da sala, a outra extremidade ficou quase alcançando o chão. Pulou do sofá. Foi correndo, então, até seu quarto, todo eufórico, cheio de um receio de que alguém viesse ralhar com ele antes de ele terminar o grande, mirabolante plano de brincadeira só dele. Abriu um baú de madeira, vasculhou os cacos de brinquedos velhos, nervoso, bagunçando muito. Até que achou – achou! – o bonequinho do homem-aranha. Voltou num zapt até a sala, tudo estava igual a antes. Olhou em volta, não parecia que alguém da casa ia chegar ali logo, ainda não tinham dado falta dele. Pendurou o boneco no barbante de chiclete. Que legaaaaal, que superhipermegafantástico! O homem-aranha ia salvar o controle remoto velho, esquecido cheio de pó em cima da tv. E tchá, lá vai o homem-aranha, com sua importante aventura narrada a estilo futebolístico, sua gigantesca teia gosmenta e elástica. Mas, muito no de repente, um barulho de trinque, uma porta abrindo! O menino levou um susto, and he gasped quase merecendo “oh” exclamativo versão hollywoodiana. Pensou que lhe iam xingar, que ia levar castigo, ficar sem comer sorvete, ter de fazer tema extra, engolir decoradas as tabuadas todas. Era a mãe. Viu o lustre. Viu o chiclete. Viu o menino. Estava séria de doer, de doer no menino, todo preocupado. E novo susto se deu: a gargalhada da mãe fazia vibrar freneticamente os tímpanos do filho.
- O homem-aranha está fazendo rappel?
A mãe era muito burra mesmo. Para quê ele faria rappel, ele tinha sua própria teia chicletística. Mas deixa, deixa a mãe, coitada. Não tem culpa de ser ignorante.

(sem título)

(escrito em julho de 2006)

- Oi, tudo bem?
- Não vou responder.
Foi com uma rapidez embasbacante que os cantos da boca de Márcio – os quais até então apontavam para cima, aprumando as bochechas na mesma direção - esparramaram-se para os lados e para baixo, e, numa conjuntura expressiva de olhos, sobrancelhas, boca e mais uns musculozinhos faciais cujos nomes não importam, o rosto virou interrogativo-exclamativo. Travou no chão o pé esquerdo que, concomitantemente a tudo isso, subia no ar de modo a não desengatar o ritmo a que vinha andando desde ladeira abaixo até o momento em que Márcio cumprimentou Malvina na frente da praça 7 de Setembro, às 14 horas e 32 minutos, dia de sol. E o par de pés fez um giro, o tronco desajeitado do homem acompanhou e, em seguida, voltou-se para a conhecida:
- Como é que é?
Malvina continuava parada na calçada, desde os milésimos de segundos atrás em que sua resposta inusitada tomara conta do Centro da cidade. Com um ar de sabe-tudo, deu continuidade ao diálogo:
- Você não quer saber se estou bem de verdade. Faz isso por costume ou educação. Se é que é possível chamar de educação o ato de perguntar algo que não se quer saber a alguém que a gente pouco conhece! Aliás, ainda que muito conhecesse: “vou bem” não é a resposta unânime e invariável?
Malvina fez uma pausa para observar o espanto de Márcio. Encarava-o, apertando bem os lábios para não desatar a rir, enquanto Márcio permanecia com a mesma expressão com a qual o deixamos. É. Talvez as sobrancelhas tenham envergado um pouco mais, e duas ou três rugas tenham aparecido em sua testa.
Era com muito prazer que Malvina descobria a estranheza alheia às suas idéias, pois despertá-la era seu mais cotado hobby. Satisfeitíssima por ter atingido seus objetivos até então – era o que a reação de Márcio lhe mostrava -, prosseguiu:
- Então... Não é uma pergunta inútil? Pois que a resposta já se sabe de antemão e, pior, também se sabe que o mais provável é que não seja verdadeira? Ou o senhor acha que todas as pessoas a quem hoje fez essa pergunta estavam bem de verdade?
Márcio pigarreou – coisa que não muda em nada a história. Malvina mudava agora o tom de voz. Para o leitor, nenhuma das duas coisas faz diferença; então me escuso a respeito do relato inútil e volto ao que falava Malvina.
- Quase um descargo de consciência, essa pergunta. Um absurdo! Mas... Seu Márcio... Porque sou solidária e respeito as necessidades humanas de manter em prática esse costume sem sentido algum, respondo ao que você me perguntou: estou bem.
Dádiva celeste! A paz e a harmonia preencheram a alma de Márcio para todo o sempre. O discurso de Malvina era imprestável para ele: tudo o que aquele senhor queria ouvir era o rotineiro “vou bem” ou quaisquer de suas expressões sinônimas. Porque Márcio era homem de costumes, não de reflexões.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O Bilhete

(Escrito em 12/11/06)

Ele olhou torto quando ela lhe entregou o bilhete. O que era aquilo? Aquele tipo de curiosidade estática em que a criatura não consegue se torcer. Câimbra geral, um sangue baixo, não sei. O que era aquilo? Ora, o senhor vai ver, já não te diz isso o meu sorriso frouxo arrependido do mistério por nem ser isso de grande importância? Devia eu ter é então ao menos incrementado a letra, as palavras, atribuído ao escrito um quê sensual-provocativo-conquistador. Nem me prestei, é só um bilhete. E não fica assim me olhando, não faz com que eu me quede em arrependimento mais damático-fatídico-oh-deus-perdi-minha-chance. Vai ele ávido abrir o papel dobrado em dois. Ela ainda sorria. Ah, eu devia ter dobrado mais vezes também, se tivesse real interessância ali dentro. Ou nem dobrado e nem escrito, já que era só aquela bobagem. “É só uma bobagem”, ela falou, antevendo uma decepção. Então a curiosidade estática dele transmutou-se de repente em ágil avidez cinética, ele abrindo a dobradura com força a capaz de rasgar papel vagabundo. E era mesmo papel vagabundo.
- O que isso...
- Eu disse que era uma besteira.
- Mas o que isso...
- Significa?
- É.
Perplexidade. Há momentos estúpidos da vida em que a dona sorte morre de pena e mete a mão a dar um empurrãozinho a botar tudo de volta nos trilhos. Meio enjambrado, mas disfarça o ridículo da situação. Noutros ela não tem tanta piedade, nem nós inspiração. E ela não teve e nós não tivemos. Então a verdade foi o único óbvio caminho.
- Ahn...É só uma pergunta que eu tinha esquecido de perguntar.
Terrível. Uma testa enrugada-interrogativa na frente de uma simples mulherzinha desmorona qualquer iniciativa mal planejada como a do bilhete.
- É, eu tinha esquecido. Me responde outra hora, sei lá.
- Mas por que é que tu...
- Queria saber disso?
- É.
Lançando mão do vira-jogo: diafragma desce, pulmão infla, contrai a musculatura intercostal, uma sistemática do improviso, a cabeça inclina para cima, a voz se mente segura de orgulho inventado numa altivez cheia de si:
- Ora! Agora vai me perguntar o porquê, é? Tu por acaso não entende que pergunta é só feita para se responder?
Explosão. Descontrole total. Impulso maluco? Veio uma sinapse transgênica impregnada de atos copiados nunca vistos na mulher:
- Vai ser desconfiado assim! Desisto! De-sis-to!
E saiu pela porta toda brava.
- Credo! Cada louco com suas...
Parou para pensar.
- ... com seus bilhetes!
Mas maldito episódio com cada palavrinha ficou por séculos na cabeça do homem. Aquela mulherzinha! Ela tinha algo de estranhamente intrigante. Intrigante e ameaçador. Porque ele não sabia a resposta. Ele nunca tinha pensado naquilo e, sinceramente, estava confuso sobre a necessidade da reflexão. Sabia tão pouco de si mesmo! Aquela mulherzinha... Chocar e intrigar com atos inusitados! Aquele bilhete... Posto o papel na boca dobrado, roçando na ponta de um dos caninos. Molhou da saliva e engoliu de raiva. Aquela mulherzinha. Aquele bilhete. Aquela pergunta!