sábado, 27 de agosto de 2011

Mais um dia de chuva


Não é quinta-feira, mas é dia de feira e chove. Te imagino comigo, na minha casa, na nossa cidade, em cima da cama do quarto de janelas sem cortinas, luzes apagadas e o dia cinza, abraçadas como naquele dia em que a idéia talvez fosse terminar tudo e que no fim se armou um temporal e voltamos correndo na chuva ensopadas para a minha casa, e eu te emprestei minha toalha de banho pela primeira vez. Lembro dessa sensação reconfortante de frio e conforto e carinho e pazes feitas. Dos teus olhos castanhos resplandecendo em toda sua plenitude frente à claridade desbotada em volta, como na primeira quinta-feira em que mordias os lábios, nervosa, de blusa azul e umas espinhazinhas na testa e muito branca, enquanto eu tipicamente rasgava o guardanapo, dobrava o canudo e quebrava os palitos de dente da mesa da cafeteria do supermercado do Bom Fim. A idéia sempre foi dizer-te que não e ir-me embora, mas diante de ti muito branca de azul marinho e olhos amendoados, eu nunca soube o que são olhos amendoados, acho que os teus são amendoados, eu não consegui dizer o que era para dizer e tentei tantos eufemismos que não disse nada enquanto fazia uma estatueta pós-moderna com o guardanapo, o canudo, o palito. Meu sentimento era branco, fusão de todas as cores, tu bem sabes o quanto eu não-gostava-de-ti-gostava-de-ti, aquelas situações de prognóstico reservado em que te atam na cadeira, jogam uma criança untada com resina na tua porta, entendes, coisas as quais só se pode aceitar, porque não existe outro destino, não se pode fazer mais nada. Passaram-se muitas quintas-feiras, tantas que paramos de contar - eu parei no 16, e tu no 19 porque é teu número preferido, na verdade eu não sei em que numero tu paraste, mas gosto de imaginar que foi no teu preferido, e muitos dias ainda serão chuvosos, e virá de novo essa sensação de pele molhada que secou, a camiseta verde encharcada no bidê do banheiro, tu com a toalha roxa no cabelo laranja, os olhos às vezes amendoados. Talvez ser amendoado não seja uma característica transitória, eu não entendo de amêndoas nem dos frutos secos que tu gostas de comer, no máximo eu te compro um saco de amendoins japoneses na feira do sábado e te dou como se tu fosses meu elefante particular porque nos desenhos animados eles sempre comem amendoins. Então vamos dizer que seja uma característica transitória que se enalteceu naquela quinta-feira em que te ofereci uma carona no meu guarda-chuva com capacidade para cinco pessoas porque pensei que teus brincos que combinavam com o colar que combinavam com a blusa que combinavam com tudo porque tu gostas dessas combinações monocromáticas faziam de ti indefesa. Só pude constatar o equívoco passos depois quando tua força de Sansão, eu deveria ter desconfiado dos teus cabelos compridos, ignorou todo o contexto do colar, do brinco, dos lábios que se mordiam nervosos, e me agarraste no meio da rua no meio da chuva a girar, a girar, que maravilha, que maravilha. Naquele momento tudo estava cinza e havia muito barulho dentro e fora e em volta, e eu não poderia prever que meia eternidade depois - meu infinito inicia para além de um ano, e quando chegarmos aí já teremos sido felizes para sempre -, eu não poderia prever que meio parassempre depois eu estaria lembrando disso desse jeito enternecido enquanto a chuva inunda uma cidade estrangeira muitos quilômetros longe do Bom Fim. Bom Fim.