sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O Bilhete

(Escrito em 12/11/06)

Ele olhou torto quando ela lhe entregou o bilhete. O que era aquilo? Aquele tipo de curiosidade estática em que a criatura não consegue se torcer. Câimbra geral, um sangue baixo, não sei. O que era aquilo? Ora, o senhor vai ver, já não te diz isso o meu sorriso frouxo arrependido do mistério por nem ser isso de grande importância? Devia eu ter é então ao menos incrementado a letra, as palavras, atribuído ao escrito um quê sensual-provocativo-conquistador. Nem me prestei, é só um bilhete. E não fica assim me olhando, não faz com que eu me quede em arrependimento mais damático-fatídico-oh-deus-perdi-minha-chance. Vai ele ávido abrir o papel dobrado em dois. Ela ainda sorria. Ah, eu devia ter dobrado mais vezes também, se tivesse real interessância ali dentro. Ou nem dobrado e nem escrito, já que era só aquela bobagem. “É só uma bobagem”, ela falou, antevendo uma decepção. Então a curiosidade estática dele transmutou-se de repente em ágil avidez cinética, ele abrindo a dobradura com força a capaz de rasgar papel vagabundo. E era mesmo papel vagabundo.
- O que isso...
- Eu disse que era uma besteira.
- Mas o que isso...
- Significa?
- É.
Perplexidade. Há momentos estúpidos da vida em que a dona sorte morre de pena e mete a mão a dar um empurrãozinho a botar tudo de volta nos trilhos. Meio enjambrado, mas disfarça o ridículo da situação. Noutros ela não tem tanta piedade, nem nós inspiração. E ela não teve e nós não tivemos. Então a verdade foi o único óbvio caminho.
- Ahn...É só uma pergunta que eu tinha esquecido de perguntar.
Terrível. Uma testa enrugada-interrogativa na frente de uma simples mulherzinha desmorona qualquer iniciativa mal planejada como a do bilhete.
- É, eu tinha esquecido. Me responde outra hora, sei lá.
- Mas por que é que tu...
- Queria saber disso?
- É.
Lançando mão do vira-jogo: diafragma desce, pulmão infla, contrai a musculatura intercostal, uma sistemática do improviso, a cabeça inclina para cima, a voz se mente segura de orgulho inventado numa altivez cheia de si:
- Ora! Agora vai me perguntar o porquê, é? Tu por acaso não entende que pergunta é só feita para se responder?
Explosão. Descontrole total. Impulso maluco? Veio uma sinapse transgênica impregnada de atos copiados nunca vistos na mulher:
- Vai ser desconfiado assim! Desisto! De-sis-to!
E saiu pela porta toda brava.
- Credo! Cada louco com suas...
Parou para pensar.
- ... com seus bilhetes!
Mas maldito episódio com cada palavrinha ficou por séculos na cabeça do homem. Aquela mulherzinha! Ela tinha algo de estranhamente intrigante. Intrigante e ameaçador. Porque ele não sabia a resposta. Ele nunca tinha pensado naquilo e, sinceramente, estava confuso sobre a necessidade da reflexão. Sabia tão pouco de si mesmo! Aquela mulherzinha... Chocar e intrigar com atos inusitados! Aquele bilhete... Posto o papel na boca dobrado, roçando na ponta de um dos caninos. Molhou da saliva e engoliu de raiva. Aquela mulherzinha. Aquele bilhete. Aquela pergunta!

Um comentário:

Anônimo disse...

Ah, queria ser o primeiro comentário do blog. Se não sou, serei o primeiro do post. E o mais sutil.

Teus textos têm vida, são bem imagináveis - vivíveis. Dá alma aos personagens, uma pequena, mas que faz deles reais naquele momento, e transporta o leitor.

Gostei em especial desse. Me inclinei na cadeira e apoiei os braços na mesinha do teclado pra ler, enquanto comia pães de mel. Acompanhei cada frase, olhando para as bocas dos personagens, e fiquei olhando para "ele" no final. E, depois de tudo aquilo, sentados, conversando, rimos.